Christian de Chergé e os monges de Tibhirine
Charles-Marie Christian de Chergé foi um monge cisterciense francês. Chergé foi enviado para a Argélia com as forças de “pacificação” do Exército Francês.
Enquanto estava lá, ele fez amizade com Mohammed, um policial muçulmano e juntos eles faziam caminhadas semanais para discutir política, cultura e teologia. De Chergé conta a seguinte história sobre sua amizade:
Desde o dia em que ele me pediu, inesperadamente, para ensiná-lo a rezar, Mohammed criou o hábito de vir conversar comigo regularmente. Ele é um vizinho e temos uma longa história de compartilhamento".
Um dia, ele encontrou a fórmula perfeita para me chamar à ordem e exigir uma reunião: “Faz muito tempo que não cavamos nosso poço!” … Uma vez, para provocá-lo, fiz a pergunta: “E no fundo do nosso poço, o que encontraremos? Água muçulmana ou água cristã?”
Ele me lançou um olhar, meio divertido e meio arrependido: “Vamos lá, passamos todo esse tempo caminhando juntos, e você ainda está me fazendo essa pergunta! Você sabe muito bem que no fundo desse poço, o que encontraremos é a água de Deus!”
Em uma dessas caminhadas, um esquadrão de rebeldes argelinos emboscou os dois homens. De Chergé, vestindo seu uniforme do exército, tinha certeza de que seu fim havia chegado. Então Mohammed se colocou entre seu amigo e os atacantes e disse a eles para deixarem de Chergé em paz: "Ele é um homem piedoso".
Surpreendentemente, eles deixaram os dois homens irem. Mas esse ato de bravura custou a vida de Mohammed: ele foi encontrado morto na rua no dia seguinte. O episódio prendeu de Chergé por dias – e mudou completamente sua vida.
Ele decidiu se comprometer com Deus e com a causa da paz. Quando seu período de serviço terminou, ele retornou à França e entrou para um mosteiro trapista. Mais tarde, ele estudou para se tornar padre e pediu para ser transferido para uma base argelina. Esse desejo foi atendido e ele voltou para a África, eventualmente se tornando o chefe eclesiástico de um distrito rural nas Montanhas Atlas.
Como abade, de Chergé tomou decisões que seus superiores no exterior viam como incomuns e até mesmo imprudentes. Em vez de fazer proselitismo, ele ofereceu aos moradores locais emprego, assistência médica e aulas de alfabetização em francês. Ele também organizou uma cúpula inter-religiosa anual para promover o diálogo muçulmano-cristão. Ele até convidou muçulmanos para ficarem no complexo de Notre-Dame dé Atlas, seu mosteiro.
Com isso, de Chergé pretendia mostrar ao mundo que muçulmanos e cristãos podem viver juntos sob um Deus ou Alá.
Como ele explicou: “a única maneira de darmos testemunho é … ser o que somos em meio a realidades banais e cotidianas ”.
De Chergé, durante a sua estadia na Abadia do Atlas, sempre encorajou o diálogo entre Cristãos e Muçulmanos. Tinha um profundo conhecimento e um grande respeito pelo Islã e as culturas árabes e islâmicas. Falava várias línguas, incluindo árabe, latim, grego e hebraico.
Em maio de 1996, o GIA, uma facção muçulmana radical ativa na Argélia, sequestrou sete dos companheiros trapistas incluindo De Chergé, após semanas infrutíferas de negociações com o governo francês o grupo terrorista matou os 7 monges. São eles os freis Christian, Bruno, Célestin, Christophe, Luc, Michel e Paul.
Após sua morte, a mãe de De Chergé publicou a carta que seu filho escreveu ANTES , já que ele teve uma estranha premonição de que logo morreria de uma morte violenta, e escreveu perdoando seus futuros assassinos, ela dizia em parte: "Se um dia acontecer – e pode ser hoje – que eu me torne vítima do terrorismo que agora parece envolver todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que minha comunidade, minha igreja, minha família se lembrassem de que minha vida foi entregue a Deus e à Argélia; e que aceitassem que o único Mestre de toda a vida não era estranho a essa partida brutal".
Gostaria, quando chegar a hora, de ter um espaço de clareza que me permitisse implorar perdão a Deus e aos meus semelhantes e, ao mesmo tempo, perdoar de todo o coração aquele que me abaterá. Eu não poderia desejar tal morte; parece-me importante afirmar isto: como poderia eu alegrar-me se o povo argelino que amo fosse indiscriminadamente acusado do meu assassinato?
O traço peculiar da vida e ação de Christian de Chergé encontra-se no campo da espiritualidade.
O seu trabalho foi marcado por uma experiência novidadeira de abertura e aprofundamento dialogal com o outro muçulmano. O toque de sua percepção do diálogo interreligioso não estava fixado no âmbito teórico ou acadêmico, mas da experiência espiritual. Na trilha aberta por Charles de Foucauld e Louis Massignon, foi também alguém que se deixou habitar e transformar pelo encontro com o islã. Dentre suas iniciativas nesse campo encontra-se a fundação do Lugar da Paz (Ribât al Salâm), um pequeno mas substantivo grupo voltado para a afirmação de uma experiência de oração e experiência comum vinculando cristãos e muçulmanos.
A ideia nasceu em 1979 e foi se firmando ao longo do tempo, e o mosteiro de Tibhirine foi o seu espaço de hospitalidade espiritual. Um dos parceiros desse empreendimento foi Mgr Claude Rault, hoje bispo de Laghouat, que relata a riqueza da experiência em seu livro Désert, ma cathédrale (Deserto, minha catedral, em tradução livre - Nota da IHU On-Line) (Desclée de Brouwer, 2008). A seu ver, o Lugar da Paz significou “uma experiência de fraternidade espiritual vivida no seio da Igreja e no seio do islã entre parceiros cristãos e muçulmanos”. A intenção era viver a vocação religiosa como proximidade aos amigos muçulmanos, gente simples que vivia “uma grande familiaridade com Deus e um amor concreto para com o próximo”. Os primeiros companheiros muçulmanos que participaram da experiência vieram da confraria muçulmana sufi Alawiya.
Já viviam a vocação específica de uma vida de oração no coração mesmo do islã, e encontraram acolhida entre os participantes do Ribât. Eles diziam que seu interesse não estava voltado para um diálogo dogmático ou teológico, travado por tantas barreiras, mas para uma experiência viva de unidade, centrada na oração: “Nós nos sentimos atraídos à unidade. Desejamos deixar Deus criar entre nós alguma coisa de novo. E isto não pode ocorrer senão na oração. Por isso quisemos partilhar esse encontro de oração com vocês”.Em discurso pronunciado aos muçulmanos das Filipinas, em 1981, o papa João Paulo II insistia na experiência da fraternidade entre muçulmanos e cristãos e dizia que os cristãos necessitam do amor dos muçulmanos, e essa era uma condição importante para a realização de uma paz verdadeira. Christian de Chergé gostava de citar essa passagem, para ele inspiradora da experiência do Ribât.
Trata-se de um caminho privilegiado para o diálogo interreligioso, centrado na oração e na contemplação. O objetivo era favorecer a possibilidade de um exercício maior de conhecimento e amor do outro, mediante a escuta atenta do Mistério de Deus. Para Christian, a presença dos Alawis proporcionou o exercício da humildade, peça essencial para qualquer diálogo interreligioso. O diálogo requer respeito, cortesia e delicadeza, não só em razão de sua natureza mesma, mas igualmente como expressão de possibilidade de percepção da fé do outro como um dom de Deus. E a oração em comum abre esse caminho singular. Trata-se de um “espaço privilegiado”, no qual “Deus pode inventar algo de novo”, um espaço onde o Espírito Santo “faz o seu trabalho”.
A rica experiência do Ribât proporcionou a seus participantes a consciência de um sentido mais elevado da oração, entendida como a “elevação do coração para a Fonte de todo bem”. Na verdade, todos sentiam-se envolvidos por um mesmo laço de fraternidade, banhados pelo amor de Deus.
Todos sentiam-se como “buscadores de Deus” e solidários com os amigos. Mas essa solidariedade provocou irritação e ira, como é comum entre aqueles que amam em profundidade. Os que mais amam são aqueles que mais atraem resistência e oposição. Muitos dos membros do Ribât viveram a experiência pascal da violência mortal, como relata Mgr Claude Rault em seu livro. Christian de Chargé sublinhava que a raiz árabe da palavra mártir (shouhada) tem a ver com a profissão de fé muçulmana (shahâda). Em passagem de correspondência com um amigo, ainda inédita, Christian resumiu de forma precisa o sentido de sua missão: “Parece-me que o Espírito quer a todo preço abater os muros de nossos cerceamentos fáceis e nos deixar com as mãos nuas, o coração aberto, prestes a acolher e a doar, a deixar o Cristo cumprir sua passagem, sua Páscoa (...). Disponibilidade a Deus e ao outro diferente que deixa escancarado e aberto o caminho do Amor, ou seja, do futuro comum”.




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